Lideranças indígenas de Mato Grosso do Sul comemoram decisão que pode dar continuidade a processos de homologação de terras para povos originários
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em julgamento, por 9 votos a 2, anular a tese do marco temporal, que daria o direito aos indígenas no Brasil de ocuparem apenas as terras que já disputavam até a data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.
Com a tese derrubada pelo Supremo, ficam garantidas aos povos indígenas de Mato Grosso do Sul 48 terras que, segundo a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), foram declaradas, delimitadas, regularizadas ou homologadas pelo governo federal.
O debate no STF em torno da definição das demarcações de terras começou em 2009 e vinha se arrastando há 14 anos. Ontem foi realizada a 11ª sessão para julgar o caso.
O resultado do julgamento foi obtido com os votos contrários ao marco temporal dos ministros Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Rosa Weber e Gilmar Mendes. Nunes Marques e André Mendonça se manifestaram a favor do marco.
Em MS, segundo dados da Funai, existem 33 terras confirmadas em posse dos indígenas (4 homologadas e 29 regularizadas, quando o processo de demarcação é finalizado).
Desse total, 26 terras poderiam sair da posse dos povos originários para voltar aos fazendeiros, caso o marco temporal tivesse sido aprovado.
O último voto da sessão foi proferido pela presidente da Corte, ministra Rosa Weber.
Segundo a ministra, a Constituição garante que as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas são habitadas em caráter permanente e fazem parte de seu patrimônio cultural, não cabendo a limitação de um marco temporal.
“Eu afasto a tese do marco temporal, acompanhando na íntegra do voto do ministro Fachin [relator], reafirmando que a jurisprudência da Corte Interamericana dos Direitos Humanos aponta para posse tradicional como fator para reconhecer aos indígenas o direito às suas terras”, declarou.
INDÍGENAS
A coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Val Eloy Terena, em entrevista ao Correio do Estado, enaltece a vitória para a comunidade indígena que foi a decisão contrária ao marco temporal do STF.
“Estamos muito felizes, é uma luta que travamos há séculos, muitos territórios foram tombados na época dos meus avôs e bisavôs, apelando pelo marco temporal. É um momento histórico e importante, e a acreditamos que vamos ter paz nos nossos territórios, garantindo um futuro bom para nossos filhos e netos”, declarou Val Terena.
O movimento indígena da Apib, que em Mato Grosso do Sul tem como base o Conselho do Povo Terena, acompanha desde o início o julgamento do marco temporal no Supremo, manifestando-se no Estado e presencialmente em Brasília.
“O nosso trabalho sempre foi de mobilização, de levar para os nossos territórios o conhecimento sobre o marco temporal. Aqui em Mato Grosso do Sul, a gente tem a Aldeia Limão Verde, que estava sem sua homologação por conta do marco temporal”, acrescentou Val Terena.
Para o historiador e líder da etnia guarani-kaiowá, Natanael Vilharva Cáceres, com a rejeição ao marco temporal, é esperada a retomada das demarcações, já que historicamente o povo indígena perdeu territórios e vidas na disputa pelas terras.
“Agora esperamos a conclusão da demarcação dos nossos territórios, que são a garantia da nossa sobrevivência física e cultural. É essencial que se concluam as demarcações sem derramamento de sangue, pois já morreram muitas lideranças indígenas na luta pela terra”, informou Natanael Cáceres.
INDENIZAÇÃO
Durante boa parte do julgamento no STF, na quarta-feira, foi colocada em pauta a possibilidade de indenização aos fazendeiros que produzem em terras consideradas territórios indígenas.
O argumento ganhou destaque durante o voto do ministro Cristiano Zanin, que foi contrário ao marco temporal, mas reconheceu a possibilidade de indenização a fazendeiros que adquiriram as terras “de boa-fé”.
Pelo entendimento, a indenização seria por benfeitorias de produção para proprietários que receberam os títulos de terras que deveriam ser consideradas como áreas indígenas do próprio governo.
O ministro Dias Toffoli também citou esta possibilidade de indenização, além de mencionar em seu voto uma lei de Mato Grosso do Sul como boa iniciativa para solucionar o conflito entre indígenas e fazendeiros, propondo a aquisição das terras disputadas, usando recursos da União, para o governo repassar a área aos povos originários.
SENADO
Apesar da decisão do STF, a tese do marco temporal segue em discussão no Senado. Um projeto que tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) quer tornar lei a tese de marco temporal para demarcações de terras.
De acordo com o professor de Direito Constitucional Sandro de Oliveira, mesmo que o marco temporal se torne lei no Senado, o STF pode questionar sua constitucionalidade.
“O Senado não detém poderes constitucionais para anular decisões tomadas pelo STF, mas pode debater o tema no âmbito de suas atribuições. No entanto, qualquer legislação contrária ao que já foi decidido, criando marco temporal, será invalidada”, informou Oliveira.
Procurada pelo Correio do Estado, a senadora por Mato Grosso do Sul Soraya Thronicke (Podemos) se pronunciou sobre a votação do STF.
“O STF formou maioria de votos contra o marco temporal e, infelizmente, essa decisão traz mais insegurança jurídica a todos os brasileiros. No Senado, buscamos fazer a nossa parte. Espero que a lei, quando aprovada no Congresso Nacional, seja respeitada”, disse Soraya.
SAIBA
Conforme informado pelo professor Sandro de Oliveira, se houver aprovação no Senado de emenda constitucional, haverá um fenômeno chamado “backlash”. O “backlash” é uma reação negativa ou retrocesso que ocorre em resposta a avanços ou a mudanças sociais, políticas ou culturais.